O Astrágalo - Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg

"... o fio tecido entre ele e eu desde aquela noite no meio das árvores ir-se-ia consolidando e enrolando, ele, eu... ele, eu... ele, eu... Pela primeira vez, não me apetece saber logo o final, nem sequer a continuação, desta aventura. Este minuto é verdadeiro e vivo, e estico.o pela eternidade..."
'O Astrágalo', Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg

Surpresa irresistível na Amadora BD 2016 que me fez voltar a olhar para esta história, depois da adaptação cinematográfica, e ganhar amor a este relato tão humano, intimista e apaixonado da vida da autora Albertine Sarrazin. 

Anne é uma rapariga de 19 anos que parte um osso do tornozelo chamado astrágalo, ao saltar a parede da prisão onde está presa por assalto. É salva por Julien, um ladrão como ela, e vai esconder-se, sofrer, rebelar-se, fugir constantemente. Mas nada lhe importa: está loucamente apaixonada por Julien. São jovens fugitivos, livres na sua vida de crime e selvagens. Qual será o preço da liberdade nesta história de amor?

'O Astrágalo', o osso partido que impede Anne de andar e viver sozinha, de ser livre e independente, é o único título possível para esta sua aventura após a fuga da prisão. Julien ajuda-a a fugir, a receber todos os cuidados necessários e a descansar, deixando-a em casa de amigos e conhecidos, levando-a a conhecer personagens inimagináveis que a fazem desesperar por não poder ter a sua vida normal.


É por isso a história de uma menina-mulher em fuga, contada na primeira pessoa; da dor física da sua recuperação e da dor ainda maior de ser um encargo para todos. Mas sobretudo do seu sofrimento perante os longos períodos sem ver Julien, pela impossibilidade de saber se ele sente o mesmo que ela. Ela, que antes de tudo isto - do maldito osso quebrado - vivera uma paixão enorme por Rolande, uma colega da prisão, que deseja rever depois do pesadelo em que a sua vida, de certa forma, se tornou.

Mas Julien está sempre lá, desde aquele momento em que a encontrou à beira da estrada, magoada, e a levou de volta à vida. Com ele sente-se inteira, capaz de tudo, numa liberdade eterna. Não há prisão física que a separe do amor que sente por este homem igual a ela, ladrão como ela, que tudo faz para sobreviver numa sociedade autoritária do pós-guerra em França.

E Anne escarrapacha esta sua liberdade interior na cara de todos. Ou melhor, Albertine fê-lo, antes do Maio de 68 e com toda a garra dos seus 19 anos na altura. Vivera o seu romance com Rolande, prostituira-se, procurara ajudar Julien na sua vida criminosa. Sempre inconformista, sempre ousada, sempre uma sobrevivente.


O romance de Albertine Sarrazin será certamente ainda mais tocante, trata-se afinal de uma semi-autobiografia. O que os autores concretizam nesta banda desenhada é dar uma dimensão ainda mais visual à aventura de Anne e Julien, com um traço muito simples, que joga muito bem com o preto e o branco nos desenhos e nos vários momentos da história. A beleza de cada ilustração, o contraste entre o dia e a noite, a intensidade dramática dos encontros de Anne - tudo isso é brilhantemente descrito entre a adaptação das palavras e o que nos é mostrado em imagens.

Há uma força muito grande nesta história, quase inexplicável, que nos puxa do início ao fim e nos emociona no final surpreendente, que gostaríamos de não ter de presenciar. Porque eles são ladrões, criminosos, mas a sua paixão e a sua liberdade impelem-nos constantemente para eles, fazem-nos simpatizar com a sua dor, a sua força, a sua rebeldia; o seu amor.

É talvez das histórias de amor mais estranhas e livres da história da literatura, e ainda assim das mais bonitas. Em novela gráfica, só sentimos de forma ainda mais intensa e íntima o seu significado.

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