Os Enamoramentos - Javier Marías


"A última vez que vi Miguel Desvern ou Deverne foi também a última vez que a mulher, Luísa, o viu, o que não deixou de ser esquisito e porventura injusto, visto que ela era isso mesmo, sua mulher, e eu, em contrapartida, era uma desconhecida e nunca tinha trocado uma palavra com ele."

Uma prenda também ela enamorada que me conquistou pela fluidez da escrita e pela sensibilidade da história, desde este primeiro parágrafo. É na primeira pessoa que Maria, mera observadora de uma história de amor, se apropria de uma verdade crua que a envolve para sempre com estas personagens quase saídas de um livro e nos dá a conhecer a genialidade de Javier Marías.

Luísa e Deverne são o casal maravilha que Maria, editora de livros, observa diariamente no café onde toma o pequeno-almoço. Até que um dia deixa de os ver, e quando volta a observá-los Deverne já lá não está: foi assassinado por um sem-abrigo que o confundiu com outra pessoa. E de um momento para o outro a vida de Luísa e dos seus filhos é abalada por uma tragédia irreversível. E a vida de Maria muda para sempre com uma aproximação espontânea a Luísa, que a leva a conhecer Javier Díaz-Varela, o melhor amigo de Deverne, e pormenores que nunca imaginou sobre a sua morte.

O que começa por ser uma história de perda transforma-se, a meio, num romance de enamoramentos e desenamoramentos a propósito de paixões alheias, regressando no final, novamente, ao tema do poder do tempo sobre a morte e a necessidade humana de ultrapassar a dor. Mais do que uma necessidade, até, porque ser humano é isso mesmo: sofrer, mas seguir em frente quando o tempo consegue curar a dor.

"Por assim dizer, eu desejava-lhes todo o bem do mundo, como às personagens de um romance ou de um filme por quem tomamos partido desde o princípio, cientes de que lhes vai acontecer algo de mal, de que a qualquer momento algo lhes vai dar para o torto, pois senão não haveria romance nem filme."

Javier Marías oferece à narradora Maria uma grande sensibilidade no relato da história, também por se tornar aos poucos parte da história, em lugar da simples observadora que era inicialmente. Os seus encontros com Javier; a forma como romanceia naturalmente a sua vida e as dos outros (fruto da sua profissão e paixão pelos livros); o que imagina que aconteceu e o confronto destas imaginações com a realidade, quando lhe é apresentada...

Tomamos o seu partido a cada revelação, a cada aproximação ou afastamento dos seus momentos de enamoramento. Sabemos exactamente o que ela sabe, imaginamos exactamente as mesmas formas de romancear a vida, e por isso surpreendemo-nos também, com ela, com a capacidade humana de as pessoas se reinventarem nas adversidades.

O autor mostra ao mesmo tempo uma grande paixão pela literatura, ao entrecortar o seu relato - de forma tão íntima e profunda - com a história de Balzac sobre o coronel Chabert, dado como morto em batalha, que ao regressar vivo já não é bem-vindo pela esposa que deixara viúva. Deverne já não volta, e Luísa já não o quereria de volta de qualquer forma. Porque precisa de seguir em frente e já o fez, de certa forma - fá-lo, aliás, a cada segundo que passa desde o momento em que o marido foi apunhalado e a sua memória fica cada vez mais distante, mais manchada pela dor do que pelas boas recordações de uma vida partilhada.

A escrita apaixonante, mais do que a complexidade das personagens e uma certa novelização da história, torna Marías um autor a explorar, na tradução ou na sua língua original (quem sabe), para que novas histórias nos possam abalar e maravilhar enquanto nos apercebemos das nossas próprias fragilidades enquanto seres humanos.

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